28 abril 2005

Contar Histórias

Antigamente, provavelmente no momento em que passamos a merecer o sobrenome ‘Sapiens’, a única forma que tínhamos para transmitir conhecimentos era “contando histórias”. Os mais novos se reuniam, provalmente ao redor de fogueiras, para escutar as histórias dos mais velhos. A tradição sobrevive de alguma forma. São nítidas ainda as histórias “fantásticas” do Vô Quim. Vez em quando, nas caminhadas ou nas visitas ao sítio do Lau, um pouco daquela magia reaparece.

Ano passado, pesquisando um tema meio chato (Aprendizado Inter-Projetos), descobri que uma das ferramentas mais excepcionais e modernas para a promoção de aprendizado coletivo são as “learning stories”. Seus criadores/adeptos não escondem o orgulho de se basearem no jurássico costume de “Contar Histórias”.

Percebendo a receptividade dos ‘causos’ do Guz me toquei que o espaço aqui merece mais e melhores histórias. Coisinhas pra gente consumir em 5 minutos. Sem delimitação de temas ou qq bobagem do tipo. Daí que o Paul Auster do post abaixo é outra coincidência daquelas.

Contar histórias. Me lembro que adorei uma crítica do ‘Achtung Baby!’, disco do U2 de 91. Falando de “Until the End of the World” o crítico dizia que Bono tinha aprendido a “contar histórias”. E era verdade! Então, contar histórias, piadas, causos... saber contá-las! Puxa, é uma baita qualidade.

Conversando com o Braga ele confessou adorar histórias de “realismo fantástico” (coisa de descendente de italiano, hehe). E contou uma muito boa. Tentarei reproduzí-la:


O caipira percebeu a chuva forte chegando. Bateu aquela dorzinha no joelho esquerdo. Isso sem falar que, olhando pro morro onde o sol brota, via-se uma nuvem preta de dar medo. Esqueceu a preguicinha do final da tarde, recolheu uns trapos no varal, tocou as galinhas pro galinheiro, entrou em casa e fechou as janelas. Não tardou e veio o primeiro brilho. Um clarão daqueles. Um tempinho depois, “cabrum!!!”. Nossa Senhora, a casa deu até uma tremidinha.

A noite chegou de vez, mais cedo, mas parecia virar dia a cada clarão. Do buraquinho da janela da cozinha o caipira espiava o toró se aproximando. Vinha aquele tanto de luz e aí ele tapava os ouvidos. “Cabrum!”. Fazia o sinal da cruz, ameaçava iniciar uma oração quando era interrompido por outro clarão e... “cabrum!”. Minha Virgem Santa, desta vez não deu tempo nem de tampar as orelhas.

E assim foi por um bom tempo. Sinal da cruz, clarão, cabrum! Uma reza, clarão, cabrum! O caipira se acostumou e desistiu de se esconder dos estrondos. Reduziu a duração das orações também. Bastava um "passa marvada". Bateu um certo sentimento de culpa também. Passou meses pedindo chuva, nem que fosse "só um cadinho". Mas tinha que chegar tudo ao mesmo tempo agora?

Mas eis que: Sinal da cruz, clarão e... nada. Uai! Uai... passou. Muito obrigado Virgem Santa. Aliviado, não demorou nem dois minutos pra pegar no sono.

Bem cedinho calçou as botas. A terra deve tá no ponto pra ser semeada, né? Passou e tomou um cafezinho. Em três mordidas acabou com a broa de sábado. Animado, abriu a porta e levou um susto. Uai sô! Tinha um trem esquisito, bem claro mesmo, bem em cima da mangueira que fica na frente do sítio. O caipira saiu devagarzinho, ressabiado. Dava um passo e olhava aquele brilho. Tentando entender, deu um giro completo em torno da árvore. Êita. De onde será que veio esse troço? Esticou o braço e pegou a vara de apanhar manga. Se afastou um pouco – vai saber o que vai cair dali – e cutucou o topo da árvore. Uma vez. Duas vezes e... CABRUM!




Atualização: o Braga ligou (!) e pediu que a gente colocasse a fonte, né? A história é do João Pereira, saudoso cidadão (caipirão!) de Brotas.

1 comentários:

Anônimo disse...

O autor desta e de outras histórias chama-se João Pereira (Brotas/SP). Ele morreu faz algum tempo.
O interessante é que até na morte ele deixou um 'causo'. Fato : ele morreu durante uma visita a Foz do Iguaçu de ataque cardíaco. Lenda(??): Dizem que ele ficou fascinado com a grandeza das cataratas e não suportou a emoção ao imaginar como iria contar a aventura aos companheiros de Brotas. Braga.