16 novembro 2007

Patícia Céio Gueia Cocô Xixi

Metade das primeiras palavras que ela aprendeu eram bobeirinhas assim: cocô, xixi... Curtia tanto que as incorporou como sobrenome. Mas o lado moleca e extrovertido sempre cedia espaço para o lado que a Vó Dith batizou de "Ouriço". Era mais que "não me toques". Era fera mesmo, explosiva. Fera escondida num rosto de Anjo.



Escorpiana, canhota e estourada. Pequenas coincidências que uso pra inventar uma proximidade ou semelhança. Bobeira. Seu mundo era tão particular, seus olhos tão astutos, sua sensibilidade tão maior.

Hoje ela estaria completando 34 anos. Nos deixou há 18. É a primeira vez que tenho coragem de escrever algo, com a fraca esperança de fazer algum tipo de homenagem. O esforço é inútil, e este texto só não vai para o limbo porque a lembrança dela nunca foi tão necessária. Lembrar a Pat nunca foi tão importante.

Nunca conseguirei criar uma mínima homenagem que faça justiça. Mas eu precisava pedir essa olhadela. Daqui para ela. Dela pra gente.

04 novembro 2007

A Coisa Verdadeira

Não foi como eu havia planejado, mas terminei de ler "Eric Clapton - A Autobiografia". 400 páginas em praticamente dois dias. Acho que é um recorde pessoal. Mérito exclusivo do autor. Não dá para parar de ler.

As críticas do livro já haviam me alertado: Clapton é dolorosamente verdadeiro em seu texto. Mas eu não esperava encontrar o que encontrei. Na verdade, meu único interesse era só uma pesquisa: descobrir por outros olhos aquele momento que adoro e que chamo de Junkyage*. Acabei aprendendo bem mais do que esperava. Muito mais.

A autobiografia do Clapton tem 'n' serventias. Tem sim uma história maravilhosa que cobre praticamente toda a Junkyage*. Clapton mostra o que escutava na adolescência e como aprendeu a tocar guitarra. Conta como detestava os Beatles e toda aquela mania inglesa de só ter olhos e ouvidos para um único estilo - ou um único artista. Saído de Ripley, pobre e descobrindo seu rumo a cada dia, teve uma sorte "dos infernos" de achar e conviver com todo mundo que tinha um mínimo de relevância na época.

Por exemplo, ele estava no Speakeasy, um pub, quando Paul, George, Ringo e John chegaram com o acetato de um disco que tinham acabado de gravar e mixar. O bar tinha um DJ e todos estavam cheios de ácido (STP - cujo efeito dura uns 3 dias). Paul, viajando, deu o disco para o DJ. Foi a primeira execução pública de "Sgt Peppers". Apesar do estado de chapação, ou por causa dele, todos viram que nascia ali um novo Beatles.

Clapton parece um tipo de Forrest Gump. Testemunhou ou participou ativamente de praticamente todos os eventos relevantes dos últimos 50 anos. Fazia um show em Boston, em 4 de abril de 67 - dia do assassinato de Martin Luther King. No teatro em frente tinha um show de James Brown. Os EUA fervilhavam e aquela noite foi de uma quebradeira danada em Boston. Clapton e seus colegas do Cream, Jack Bruce e Ginger Baker, tiveram que fugir pelos fundos do teatro.

Não vou fazer um resumão do livro. Queria apenas ilustrar o fator "run Forrest" e a importância do livro na documentação de uma época - a época mais criativa do século XX. E não estou falando só de música. Longe disso. Clapton estudou design. Era ligado em literatura, teatro (adorava um peça de Harold Pinter, "Caretaker", de 59), cinema (italiano e francês!) e moda! Foi ele quem desenhou o modelito 'mod' que os Yardbirds utilizavam (terninho moderno com lapelas curtas e abotoado até em cima).

Mas, como eu disse, o livro tem outras 'serventias'. Clapton é realmente de uma sinceridade raríssima entre famosos. Coitados, mas não deixei de pensar no quanto Roberto Carlos, Xuxa e afins se apequenam ao tentar esconder seu passado. EC virou um gigante ao escrever sua autobiografia. Não como artista, que eu já admirava, mas como pessoa.

Ele não poupa detalhes na descrição de seus vícios e das incríveis lutas que travou para livrar-se deles. Mas o faz sem melodramas ou rodeios. É cru e direto. A leitura vira um turbilhão de emoções. Numa página você chora. Na seguinte, ri por alguns minutos. Ri de verdade, não de nervoso. Por exemplo, num trecho ele acaba de narrar uma ralação danada com drogas. Aí, por um motivo qualquer, se encontra com Keith Moon, baterista do Who. E conclui que ele era "fichinha" perto da loucura de consumo que era o Keith.

A vida de Clapton é marcada por tantas desgraças, sendo a mais famosa a perda do filha Conor, que é praticamente tudo o que um sujeito como eu sabe dele. Engana-se quem acha que o livro é um tipo de expiação. É uma reflexão de fato, feita por um senhor de 62 anos de idade que se descobriu depois de velho. É uma história de vida rica demais. Então vai uma dica estranha do BlueNoir: você curte livros de auto-ajuda? Vai adorar também o livro de EC. Não estou brincando nem tirando sarro.

Aos que querem só a música outra dica: municie-se. Se você não conhece, é uma excelente oportunidade para descobrir Stephen Stills (Buffallo Springfield e CSN&Y), Duane Allman (Allman Brothers), J.J. Cale, George Harrison e, claro, todos os grandes do Blues, de Robert Johnson até Robert Cray. Clapton presta um belo tributo a todos, relembrando-os com sinceridade e a merecida reverência. A história dele com George Harrison é a história de uma amizade impressionante. Quem conhece só a famosa "traição" (Layla!), não sabe 1% do ocorrido.



O título deste post tem duplo sentido. Chato é ter que explicar um título. Sou chato, estou acostumado. O primeiro, óbvio, é a sinceridade do livro. O outro aparece em vários momentos do texto. A "coisa verdadeira" marca a boa música, a música honesta. Clapton não gostava dos primeiros Beatles e de todas as suas cópias porque elas não eram sinceras. Clapton não gostava do Led Zeppelin porque eles não eram justos com os blueseiros que lhes forneceram matéria prima para seus primeiros sucessos. Clapton aprendeu com seus pais (na verdade avós) a valorizar só a "coisa verdadeira". Por isso vai direto ao ponto:

"A cena musical como a vejo hoje é pouco diferente de quando eu estava crescendo. Os percentuais são aproximadamente os mesmos: 95% de lixo e 5% puro. Contudo, os sistemas de marketing e distribuição estão no meio de uma enorme guinada, e por volta do final desta década creio ser improvável que qualquer uma das atuais gravadoras ainda esteja no negócio. Com todo respeito a todos os envolvidos, isso não seria uma grande perda. A música sempre vai achar um caminho até nós, com ou sem negócios, política, religião ou qualquer outra baboseira ligada a ela. A música sobrevive a tudo e, como Deus, está sempre presente. Não precisa de ajuda, e não é obstruída. Ela sempre me encontrou e, com a benção e permissão de Deus, sempre haverá de me encontrar."


A autobiografia de Clapton é um documento valiosíssimo. Ao contrário do que imaginei, não é um livro para poucos. Não vejo outra forma de encerrar este post: Clapton, muito obrigado.

02 novembro 2007

Uma Viagem dentro da Viagem...

... dentro d'outra viagem. Ao contrário do que 'prometi' para alguns amigos, não consegui ler toda a autobiografia do Clapton na viagem que comecei na última terça. O dia da promessa era o terceiro e penúltimo de uma seqüência de cervejada. Na segunda eu era uma múmia-ressacada. O máximo que consegui foi comprar as passagens e dar um jeito no cabelo e na barbicha. Na terça, 8 da matina, entrei no ônibus carregando a ressaca da ressaca. Impossível tentar ler qualquer coisa.

Mas eu tinha outra boa desculpa: era um roteiro inédito. Há tempos tenho uma mania. Roteiros inéditos devem ser mapeados. Evito até mesmo ligar meu sonzinho. Mapeamento completo é assim. Merece atenção total. E dá uma certa dor no pescoço, porque não desgrudo os olhos da janela. O roteiro: Vga - Poços - Campinas - Bauru. Tudo de buzão. O roteiro durou 14 horas (contando as 3 horas e tanto de 'castigo' em Campinas).

O trechinho em Minas já era conhecido. Mas fazia muito tempo que não via aquele trecho da represa. O estado deplorável da estrada irrita. A água acalma. Na troca de ônibus, em Alfenas, pensei ter perdido meu Zippo-xodó. Só descobri na madrugada de hoje que ele estava perdido em terreno conhecido, meu porão.

Poços irrita tanto quanto a estrada ruim. Uma cidade tão 'marketeira' não pode ter aquele lixo de rodoviária, com aquele lixo de lanchonete. Uma cidade tão 'bonitinha' não merece ônibus cruzando toda a cidade. Sei lá se existe solução, mas não deixa de ser um lixo irritante. Irritação vira susto na forma como o motorista desce a serra de Andradas. Ela lembra um pouquinho aquelas descidas para as praias paulistas. É breve, mas dá frios na barriga. Mas é muito bonita também. Mais que a cidade que nos aguarda lá embaixo. Andradas é uma decepção. Em tamanho, força e estilo. E aquele papo todo de vinho não cola nem aqui nem na China. Pena.

Troca-se de estado, troca-se de estrada. Era para ser a mesma, mas em São Paulo estamos isentos de buracos. A paisagem também vai mudando, gradualmente. As culturas mudam. E belas florestas de eucalipto novo, magricelo, intercalam plantações de cana e laranja. É a primeira vez que passo ao lado daquela fábrica de papel sem sentir náuseas. Aliás, não senti cheiro algum. Só não sei se era sintoma da ressaca ou alguma atitude ecologicamente correta da fábrica. Mogi, Mogi, Campinas. A feiúra se instala. É raro ver algo minimamente agradável. Campinas deu errado e ainda não sabe. Pena.

As três horas de castigo ali, em outro lixo de rodoviária, merecem um único adjetivo: Inferno! O calor era insuportável. O movimento modorrento e o sabor de quase tudo vendido ali idem. A salvação só se mostrava possível quando uma bela menina surgia do nada, indo pra lugar nenhum. A única coisa boa daquele calor é o quanto ele revela das belas meninas. Não falo só das partes do corpo, mas dos gestos e artifícios para driblar o calor. Percebe-se o charme d'uma moça pela forma como ela dribla o calor. Algumas são docemente desajeitadas. Outras, verdadeiras damas. Todas ali pareciam estudar alguma coisa enquanto eu, sem disfaçar, as estudava. O calorão se confundiu com o mal estar da ressaca e com o calor que vinha delas. E o relógio não andava. Ia para uma lan-house só para aproveitar um pouco do condicionador de ar. Não queria ler emails. Mas, quando voltava para o inferno, via que aquela beldade tomara seu rumo. Sorte que logo aparecia outra. E outra.

Até que o buzão final apareceu. Agora sim, um roteiro 100% inédito: Campinas - Bauru. Eu tinha só mais 1 hora com a luz do sol, mas tudo bem. Logo que Campinas acaba, acaba também a feiúra. Americana, Limeira... uma sucessão de visões muito agradáveis. Tem um haras ali, do lado direito (sempre viajo na 11), que parece saído d'um cartão postal canadense. O senso estético desse povo é incrível. E esquece o 'canadense' ali em cima. Sempre tem um 'q' de originalidade, de tupiniquim. Melhor dizendo: de São Paulo - estado. A riqueza exala. E acabo de temer que meu texto seja visto como um tipo de manifesto elitista. Sei lá, mas beleza e bom gosto não são necessariamente caros. Quem me conhece me entende.

E o sol se vai. Nada marcante. Só me deixa triste porque ainda tenho 3 horas pela frente. Na penumbra. E num silêncio que raramente ocorre em ônibus que circulam Minas. Acho que tava todo mundo cansado, depois de um dia de trampo e calor insuportável. Mas nem roncos apareciam. Jaú apareceu. Uma curiosidade que tenho desde o dia que descobri que a Luciana Vendramini é de lá. Como será Jaú? Não sei, não vi nada. Só um riozinho com o mesmo nome.

De repente, um rio imenso. Uai, será que aquele riozinho cresce assim tão rápido? Não, para minha surpresa era o Tietê. Não deu pra ver quase nada. Pequenas luzes em ambas as margens, e uma longa ponte sobre ele. Caramba, é o mesmo Tietê? Coloquei na agenda mental: quando eu voltar, em dois dias, preciso vê-lo direito.

Minha passagem por Bauru será registrada em outro canto, outro momento. Aqui só vale dizer que é um cidadão. Bonita, simpática e com gente simpática. Estranhei a ausência de um sotaque forte. Pensei que veria algo tipo Piracicaba ou Sorocaba. Que nada. Fiquei num hotel bem próximo da Vitória Régia. Fiz poucas caminhadas por ali, e vi um boteco legal atrás d'outro. Lembrei da ressaca e segurei a vontade de conhecer o chopp Brahma de lá. Aprendi depois que aquele avenidão bonito, a Nações Unidas, tá em cima d'um córrego. Que um dia aquilo tudo estourou. Pequenas histórias marcantes que toda cidade tem. Bauru tem alguma coisa a mais. E uma dúvida: o que ela quer ser? Um professor me ensinou que ela é um grande 'hub' - um entroncamento. Tem até porto seco (como Vga)! Mas acho que Bauru ainda não sabe o que pode ser. Ou quer.

Dois dias depois, o retorno. Bauru, como Poços, merece uma rodoviária melhor. Aliás, acho que todas as cidades merecem rodoviárias mais decentes. Só Sampa (terminal Tietê) se salva. O resto parece homenagem ao mau gosto. E são muito mal tratadas. Lixos - não tenho outra palavra.

Ansiedade: tenho que ver o Tietê. Antes confirmo que Pederneiras, coladinha em Bauru, parece um subúrbio mal tratado. Aliás, dois trechos muito ricos são intercalados por trechos mal tratados. Aquela parte de Bauru, Araraquara, São Carlos, Brotas (estranha no triângulo) é muito jóia. Aí vem Rio Claro e outras estranhas. Aí vem Limeira e Americana. O roteiro merecia um fim melhor que Campinas. Mas antes de tudo veio Jaú. E veio o rio Tietê!

Ainda pagarei caro por isso mas tenho que confessar: chorei. Assim, do nada. Chorei ao ver o rio. Caramba, aquela merdinha cheia de merda que cruza uma parte muito feia de Sampa não pode virar esse negócio tão bonitão, tão vivo. Coisa de babaca, eu sei, mas chorei ao ver o rio Tietê. Queria que o ônibus parasse ali um pouquinho. Por dois minutos, pelo menos. Queria fotografá-lo. Não foi a primeira vez que um rio me fez chorar. Em 2001 conheci a nascente do Rio Verde.



Outra titica que fica grande. Mas não é nem 1/3 do Tietê. Em tamanho. Em surpresa. Afinal, lá em Itanhandu, o Verde é puro. O Tietê, por outro lado, nasce praticamente nos esgotos de Sampa. Mas ali, perto de Jaú, logo que a ponte acaba pinta uma ponta de decepção. Quem foi o idiota que teve a idéia de plantar monótonos pés de cana tão pertinho da margem dele? Nem tô com preocupações ecológicas não. Só estéticas mesmo. O Tietê merece florestas virgens de ponta a ponta. Com árvores bem altas e intransponíveis. Sei que já existem diversas obras que homenageiam o rio. Mas acho nenhuma ainda fez 100% de justiça. Pensa na metáfora: nasce na merda. Nasce pertinho do mar. Mas corre para o lado errado. Erra a vida inteira. Mas chega bonitão no final dela. Para morrer no Paraná. O Chico devia conhecer o Tietê. Os Cowboys Junkies (que já fizeram a Trilogia do Rio) também.

Que tristeza. Termina o trecho inédito e Campinas aparece de novo. O prêmio é um toró fenomenal que cai por ali. Vi há pouco que o toró fez vítimas. Mas, naquele momento - naquela bosta de rodoviária, era um alívio. Um breve sinal de que São Pedro existe e é justo até com os poucos justos.

Entro no penúltimo ônibus sacando da mala "Eric Clapton - Autobiografia". É a primeira que leio uma em toda a minha vida. Sempre fujo desse tipo de papo. Mas o Clapton dispensou 'ghost writers' e afins. Falaram que Clapton foi dolorosamente honesto. Como Clapton é um total mistério, mergulhei no livro. Este post era para ser sobre ele... a outra viagem dentro da viagem. Mas não vou misturar viagens. Inté.