04 novembro 2007

A Coisa Verdadeira

Não foi como eu havia planejado, mas terminei de ler "Eric Clapton - A Autobiografia". 400 páginas em praticamente dois dias. Acho que é um recorde pessoal. Mérito exclusivo do autor. Não dá para parar de ler.

As críticas do livro já haviam me alertado: Clapton é dolorosamente verdadeiro em seu texto. Mas eu não esperava encontrar o que encontrei. Na verdade, meu único interesse era só uma pesquisa: descobrir por outros olhos aquele momento que adoro e que chamo de Junkyage*. Acabei aprendendo bem mais do que esperava. Muito mais.

A autobiografia do Clapton tem 'n' serventias. Tem sim uma história maravilhosa que cobre praticamente toda a Junkyage*. Clapton mostra o que escutava na adolescência e como aprendeu a tocar guitarra. Conta como detestava os Beatles e toda aquela mania inglesa de só ter olhos e ouvidos para um único estilo - ou um único artista. Saído de Ripley, pobre e descobrindo seu rumo a cada dia, teve uma sorte "dos infernos" de achar e conviver com todo mundo que tinha um mínimo de relevância na época.

Por exemplo, ele estava no Speakeasy, um pub, quando Paul, George, Ringo e John chegaram com o acetato de um disco que tinham acabado de gravar e mixar. O bar tinha um DJ e todos estavam cheios de ácido (STP - cujo efeito dura uns 3 dias). Paul, viajando, deu o disco para o DJ. Foi a primeira execução pública de "Sgt Peppers". Apesar do estado de chapação, ou por causa dele, todos viram que nascia ali um novo Beatles.

Clapton parece um tipo de Forrest Gump. Testemunhou ou participou ativamente de praticamente todos os eventos relevantes dos últimos 50 anos. Fazia um show em Boston, em 4 de abril de 67 - dia do assassinato de Martin Luther King. No teatro em frente tinha um show de James Brown. Os EUA fervilhavam e aquela noite foi de uma quebradeira danada em Boston. Clapton e seus colegas do Cream, Jack Bruce e Ginger Baker, tiveram que fugir pelos fundos do teatro.

Não vou fazer um resumão do livro. Queria apenas ilustrar o fator "run Forrest" e a importância do livro na documentação de uma época - a época mais criativa do século XX. E não estou falando só de música. Longe disso. Clapton estudou design. Era ligado em literatura, teatro (adorava um peça de Harold Pinter, "Caretaker", de 59), cinema (italiano e francês!) e moda! Foi ele quem desenhou o modelito 'mod' que os Yardbirds utilizavam (terninho moderno com lapelas curtas e abotoado até em cima).

Mas, como eu disse, o livro tem outras 'serventias'. Clapton é realmente de uma sinceridade raríssima entre famosos. Coitados, mas não deixei de pensar no quanto Roberto Carlos, Xuxa e afins se apequenam ao tentar esconder seu passado. EC virou um gigante ao escrever sua autobiografia. Não como artista, que eu já admirava, mas como pessoa.

Ele não poupa detalhes na descrição de seus vícios e das incríveis lutas que travou para livrar-se deles. Mas o faz sem melodramas ou rodeios. É cru e direto. A leitura vira um turbilhão de emoções. Numa página você chora. Na seguinte, ri por alguns minutos. Ri de verdade, não de nervoso. Por exemplo, num trecho ele acaba de narrar uma ralação danada com drogas. Aí, por um motivo qualquer, se encontra com Keith Moon, baterista do Who. E conclui que ele era "fichinha" perto da loucura de consumo que era o Keith.

A vida de Clapton é marcada por tantas desgraças, sendo a mais famosa a perda do filha Conor, que é praticamente tudo o que um sujeito como eu sabe dele. Engana-se quem acha que o livro é um tipo de expiação. É uma reflexão de fato, feita por um senhor de 62 anos de idade que se descobriu depois de velho. É uma história de vida rica demais. Então vai uma dica estranha do BlueNoir: você curte livros de auto-ajuda? Vai adorar também o livro de EC. Não estou brincando nem tirando sarro.

Aos que querem só a música outra dica: municie-se. Se você não conhece, é uma excelente oportunidade para descobrir Stephen Stills (Buffallo Springfield e CSN&Y), Duane Allman (Allman Brothers), J.J. Cale, George Harrison e, claro, todos os grandes do Blues, de Robert Johnson até Robert Cray. Clapton presta um belo tributo a todos, relembrando-os com sinceridade e a merecida reverência. A história dele com George Harrison é a história de uma amizade impressionante. Quem conhece só a famosa "traição" (Layla!), não sabe 1% do ocorrido.



O título deste post tem duplo sentido. Chato é ter que explicar um título. Sou chato, estou acostumado. O primeiro, óbvio, é a sinceridade do livro. O outro aparece em vários momentos do texto. A "coisa verdadeira" marca a boa música, a música honesta. Clapton não gostava dos primeiros Beatles e de todas as suas cópias porque elas não eram sinceras. Clapton não gostava do Led Zeppelin porque eles não eram justos com os blueseiros que lhes forneceram matéria prima para seus primeiros sucessos. Clapton aprendeu com seus pais (na verdade avós) a valorizar só a "coisa verdadeira". Por isso vai direto ao ponto:

"A cena musical como a vejo hoje é pouco diferente de quando eu estava crescendo. Os percentuais são aproximadamente os mesmos: 95% de lixo e 5% puro. Contudo, os sistemas de marketing e distribuição estão no meio de uma enorme guinada, e por volta do final desta década creio ser improvável que qualquer uma das atuais gravadoras ainda esteja no negócio. Com todo respeito a todos os envolvidos, isso não seria uma grande perda. A música sempre vai achar um caminho até nós, com ou sem negócios, política, religião ou qualquer outra baboseira ligada a ela. A música sobrevive a tudo e, como Deus, está sempre presente. Não precisa de ajuda, e não é obstruída. Ela sempre me encontrou e, com a benção e permissão de Deus, sempre haverá de me encontrar."


A autobiografia de Clapton é um documento valiosíssimo. Ao contrário do que imaginei, não é um livro para poucos. Não vejo outra forma de encerrar este post: Clapton, muito obrigado.

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