Por Joaquim Ferreira dos Santos
Esse é o país — já que de vez em quando aparece alguém nos jornais perguntando que país é esse — esse é o país em que se bate o portão na cara da Velha Guarda da Portela porque, se ela desfilar, vai prejudicar a festa.
Esse é o país que acabou de passar na sua televisão e nas primeiras páginas dos jornais. O país da bunda jovem, da redondilha maior em que queremos todos meter a nossa poesia e dar dez, nota dez sem tirar de dentro. O país do chulo. Do rabo como item cultural. O resto é velharia. Descartável. Um bando de tradições miseráveis que só atrapalha a evolução da escola, desconta ponto no quesito harmonia, atravanca o progresso geral da nação e provoca cacófatos danados como esse.
Dois anos atrás um ministro de assuntos ordinários chamou toda essa gente velha pra fila, pôs embaixo do sol e ligou o gás. Os pretos velhos sobreviveram. Vaso ruim, a Fernanda Young tinha razão, não quebra. Agora bate-se-lhes com o portão na cara. Falta bunda redondinha na Velha Guarda da Portela, falta silicone nos seus peitos muxibinhas, falta botox em sua beiçolinhas africanas. E, onde já se viu?, ainda querem passar sob as luzes da mesma avenida em que a câmera voadora da Globo dá uma geral de frente e verso, por cima e baixo, da Juliana Paes.
Aqueles crioulos velhos da Portela fugiram da polícia no século passado, cresceram no sapatinho, improvisaram à luz das gambiarras, batucaram na cozinha, botaram toneladas de paio no feijão, mas infelizmente não sabem mais se comportar diante do camarote da Nestlé. Inventaram a festa, os pobres coitados. O que adianta se não têm mais pique para desfilar no tempo previsto?!
Fecha o portão no reco-reco neles!
Aos rigores do novo regulamento e da falta de respeito com qualquer cheiro de tradição!
Isso aqui, ô, ô, é o terreiro que está reescrevendo a frase clássica de que um país se faz com homens e livros. O acúmulo de conhecimento já era. Bullshit. O Brasil é feito de homens e bundas novinhas. Bundas de preferência calipígias, esse best-seller de carne crua suculenta, steak tartar para se cair de boca e devorar, procurando em sua pimenta escondida um sentido que explique nossa falta de cabeça e imaginação.
O carnaval de 2005 vai entrar para a história como aquele em que os velhos da Velha Guarda choraram, marginalizados pelo estigma de estarem na festa desde o seu início.
Foi o carnaval em que as bundas invejosas sorriram por estarem agora usufruindo da delícia de comandarem o cordão moderno.
Esse é o país — já que a toda hora aparece um beletrista perguntando para onde vamos — esse é o país que vai sempre atrás de um rabo qualquer balançando. Não à toa, as grandes exemplares da nova raça são chamadas “cachorras”.
Nada contra a bunda, Deus que me livre de tamanha heresia, e seu poder de animação pândega. Há até quem sugira, na roda de chope do Bracarense, que ela roube do cinema o slogan de “a melhor diversão”. Pode ser. Mas o pandeiro em que se bate aqui é outro.
Fernando Pamplona inventou os enredos sobre a história dos negros, Joãosinho Trinta dimensionou os carros para os novos tempos, Fernando Pinto popicalizou a festa — e, à cultura da Mangueira, dos malandros do Estácio, das tias baianas da Praça Onze, esses artistas revolucionários iam acrescentando sua imaginação respeitosa para com o passado. Em 2005, a grande novidade do desfile foi um laquê que mantém as bundas mais durinhas, bundas agora tão vitreamente plastificadas que já deixaram para trás sua vocação original. Viraram autênticos carros alegóricos. Breve, estarão entre os quesitos a serem pontuados por especialistas formados nos cursos da Liga das Escolas.
(Este ano, a propósito, já surgiu nos jornais um analista de rainhas de bateria, essas senhoras que nada mais são do que as melhores bundas de cada agremiação. O crítico pontuou cada uma delas, digo, as rainhas, com análise muito séria de performances, de suas relações com os ritmistas e empatia com o público.)
Uma bunda é uma bunda é uma bunda — acho que Gertrude Stein andou dizendo alguma coisa parecida — e todas juntas podem até fazer uma festa animada sábado à noite num apê de Copa. Carnaval, se eu entendi o que estava escrito nos sambas de Silas de Oliveira, é a história de outra orgia. Nela, Tia Surica, em quem bateram com o portão na cara, vale mais que a Carol Castro, em quem só bateram com as carícias dos flashes. A história dos povos ainda não registra nenhuma cultura formada a partir do par de glúteos,talvez porque eles sejam comuns a todos os povos. Falta-lhes originalidade artística. Não é verdade sequer, como julgam os especialistas, que as bundas nacionais são melhores que as de todos os países do Mercosul e da União Européia juntas. Mentira, orgulho bobo. As bundas brasileiras apenas são mais exibidas.
Esse é um país que gosta de esquecer sua História, seja por falta de fosfosol no cérebro, seja porque preferiria que ela fosse diferente. Bater com o portão na cara do passado e liberar o acesso das neobundas galácticas de laboratórios é uma dessas tentativas equivocadas de reescrever o Brasil como um puro-sangue que não cabe em si, muito menos na calça da Gang, de tão arrogante.
São 500 anos de poucas glórias. Inventamos uma mistura de limão com cachaça, o chute com três dedos — e o que mais mesmo?
A Portela fez com o carro da Velha Guarda o que os jornalistas fazem com seus textos. Deixam a parte menos interessante para o final porque, se não couber no espaço, corta-se por aqui mesmo. Ninguém sentirá falta das idéias desbundadas.
Chama-se a técnica de “pirâmide invertida”. Os pretos velhos dos subúrbios são aqueles que abriram a roda e aprenderam a bater tambor de um jeito diferente, o tal do samba, uma das outras colunatas dessa civilização pobre, pero divertida, que eles ajudaram a erguer. No desfile da Portela, a Velha Guarda estava no final, um penduricalho sem importância, pronto para o abate — e não deu outra. Esgotou o tempo? Corta fora a velharada que só atravanca o progressio
Eu acho o contrário, mas sei que nesse bundalelê geral minha opinião também pouco interessa. Pode cortar. Fecha o portão na cara dessa velha-guarda jornalística.
Extraído do Jornal O Globo Online, de 14.02.2005 (2ª feira), "Segundo Caderno".
ps do pv: Diogo Mainardi tem que aprender muito até chegar no chinelo do Joaquim, não?
24 fevereiro 2005
Pandeiros
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