25 agosto 2005

Companhia

por Guz Vasconcellos



Era segunda-feira outra vez. Isso já havia acontecido
diversas vezes naquele ano. O mundo dá muitas voltas.
Ele sabia. E já estava cansado de ser retardatário na
corrida da vida. Onze e meia da manhã. A cidade
inteira já estava funcionando a todo vapor. Parecia
que só ele não fazia parte daquela engrenagem.

O vazio e o silêncio do quarto em contraste com os
ônibus e carros e vozes lá fora aumentava ainda mais o
sentimento de solidão. Por um momento ele sentiu medo.
Depois veio a raiva, a angústia... e a fome. Não havia
comido nada na noite anterior. No frigobar, desligado,
só um vidro de azeitona. Pelo menos ajudava a pressão
não baixar. Foi quando ele escutou a campainha tocar.
O aluguel do quartinho estava há seis meses atrasado,
mas desta vez não era cobrança. Pelo olho mágico ele
pôde ver as costas e o cabelo dela. Ela sempre
aparecia nos dias de mais solidão.

– Você está fedendo! – ela disse já abrindo a
geladeirinha. – Não tem nada pra comer aqui?! E essa
bagunça? Não faz nada o dia inteiro, devia pelo menos
deixar essa espelunca arrumada...

E ele só ouvia, acompanhando os movimentos dela com os
olhos. Era linda.

– O quinto dos inferno deve cheirar melhor que este
teu banheiro! Desde quando você não dá uma descarga?
Já sei. Mais ou menos desde quando não acerta o mijo
dentro da privada...

E ele só olhando. Quando ela estava lá o quarto
parecia menor. Ela não parava de falar. Eles se
conheceram quando ele foi despedido do jornal. Naquela
noite, voltou para casa e encheu a cara de vodka.
Quando acordou, ela estava lá. Falando. Depois disso,
passou a ser uma visita cada vez mais freqüente.

Ele não tinha muitos amigos. Sequer conversava
informalmente com alguém. Na redação, nunca entregava
os textos em tempo. Estava sempre um passo atrás dos
outros. Com o passar dos dias, três, quatro passos
atrás. Não teve como não ser mandado embora. Era um
escritor, não um jornalista.

Depois disso ainda fez alguns bicos por aí. Seu texto
tinha estilo. Só lhe faltava cabeça. Então começou a
faltar dinheiro, feijão e sobriedade, até ficar do
jeito que estava.

– Que rabiscos são estes aqui? – a moça mexia nos
papéis sobre a escrivaninha – “Era segunda-feira outra
vez. Isso já havia acontecido diversas vezes naquele
ano...” Que porcaria é essa? Tentando escrever de
novo? Já te disse para largar mão disso. Tem é que
arrumar um serviço ou ainda vai morrer de fome...

– Não fuça nas minhas coisas! – finalmente ele disse
alguma coisa. E ela continuou:

– Você precisa crescer, rapaz. Sair desse teu
mundinho. Ninguém ganha a vida brincando com
palavras... – ela falava sem parar. Nem parava de
andar. E ele já cansado de acompanhar os passos e a
voz dela.

– Por que você vem aqui? – ele perguntou tentando
interrompê-la. Sem sucesso.

– ... sabe, acho que você devia tomar uma atitude. Sei
lá. Dar um upgrade na sua vida...

– O que vem fazer aqui?! – tentou novamente. E ela
ignorando. Todas as vezes que ela aparecia, ele
perguntava e nada.

– ... quem sabe sair pelo mundo, viajar só você e sua
mochila...

– QUE MERDA VOCÊ VEM FAZER AQUI?! – Ele já estava aos
berros e ela nem aí. Continuando seu discurso. Como
sempre. Ela vinha, enchia o saco, nem o escutava, mas
quando ia embora ele não via a hora dela voltar.

Ali, enquanto ele gritava, ela falava. Ninguém se
ouvia. E, lá fora, a Bernadete, vizinha do lado,
comentava com a amiga que o moço do 201 – o da porta
que não mais abria - estava gritando sozinho de novo.
Coitado.

3 comentários:

Paulo Vasconcellos disse...

Raríssimas vezes o BlueNoir mereceu um 'post' tão BlueNoir...

A brincadeirinha 'recursiva' a la Paul Auster; o clima pesado (dá pra ler imaginando um Miles circa '69); a precisão do ambiente sujo (dá pra ver uma câmera filmando de cima pra baixo, fixa, como Wells e Weisner fariam).

Dizer o q? Parabéns Guz!

(Mas vê se na próxima manda uma piadinha pra não espantar a patota q não curte nada muito 'bluenoir' não, ok? hehe)

Anônimo disse...

Essa foi a minha quarta tentatica de escrever um 'conto'. No primeiro, teve um boteco que explodiu. No segundo, o Jeremias matou a mãe. O terceiro foi só uma crônica mais comprida. Aí, nesse, acho que consegui um clima bacana... Mas, vê-se que não é muito minha praia...

Paulo Vasconcellos disse...

Não vai parar por aí, né?