15 junho 2008

Memo Nº 2

Pra não perder o que coloquei "Na Memória" (ao lado):


Deitados nos catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó de sua tristeza. Discretamente, como se houvesse perigo de que os outros pudessem ver o mísero espetáculo, a mulher do médico tinha ajudado o marido a assear-se o melhor possível. Agora havia um silêncio dorido, de hospital, quando os doentes dormem, e sofrem dormindo. Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora. Num gesto cansado, levou as mãos à cara para afastar o cabelo, e pensou, Vamos todos cheirar mal. Nesse momento principiaram a ouvir-se uns suspiros, uns queixumes, uns gritinhos primeiro abafados, sons que pareciam palavras, que deveriam sê-lo, mas cujo significado se perdia no crescendo que as ia transformando em grito, em ronco, por fim um estertor. Alguém protestou lá no fundo, Porcos, são como os porcos. Não eram porcos, só um homem cego e uma mulher cega que provavelmente nunca saberiam um do outro mais do que isto.


- José Saramago ("Ensaio Sobre a Cegueira")

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