por L.F.Veríssimo
Agora é tarde, Inez é morta, provavelmente a tiros, mas o debate vai continuar depois do referendo. E como muita gente se queixou que o referendo foi confuso, sugiro que da próxima vez que consultarem a população sobre o assunto simplifiquem a pergunta, colocando-a em termos corriqueiros, de experiências pessoais como as que estão todos os dias nos jornais, e que qualquer um entenderá. Por exemplo: se você fosse a mãe de um rapaz morto com um tiro numa briga de torcidas, preferiria que fosse mais difícil alguém ter acesso a armas como a que matou seu filho ou que seu filho também tivesse acesso a uma arma para poder se defender? Não é uma pergunta sentimental ou injustamente armada para favorecer um lado, eu até tenho dúvidas sobre como as “mães” hipotéticas responderiam. Mas a questão é, ou era, simplificada, exatamente esta.
Os que pregaram o “Não” invocaram muito a interferência indevida do estado na vida e no direito de escolha dos cidadãos. Vale a pena recordar outras ocasiões em que foram ouvidas queixas parecidas, na história do Brasil. Na abolição da escravatura havia tantos argumentos fortes a favor como contra a medida e — como no caso do referendo das armas — muitos dos antiabolicionistas nem tinham escravos, defendiam a escravatura em nome do direito de quem tinha de não ser coagido pelo estado. Não foi uma resistência emocional, foi racional e bem articulada como muitos dos artigos que lemos recentemente na defesa do “Não”, e o resultado é que atrasou a nossa história. O Brasil foi o último país do mundo a acabar com a imoralidade do escravismo. Mas algumas defesas da liberdade de ter escravos foram brilhantes.
Outro exemplo: a revolta contra a vacinação antivaríola no Rio de Janeiro, que chegou, violentamente, às ruas, mas começou na imprensa, onde Oswaldo Cruz era denunciado como uma ameaça pública pior do que qualquer epidemia. Foi preciso recorrer às armas para enfrentar a revolta, e alguns setores do exército aderiram aos revoltosos. A população do Rio foi vacinada literalmente à força. Livrou-se da varíola sob repetidos protestos contra aquela suprema interferência — subcutânea! — do estado na vida dos cidadãos. Oswaldo Cruz perderia um hipotético referendo popular sobre a vacina, na época, de zero.
O Brasil perdeu a oportunidade de dar um bom exemplo ao mundo na questão das armas. Mas estou escrevendo sem saber qual foi o resultado do referendo. Pode ter dado o “Sim”. Neste caso, se você leu até aqui, desleia.
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pv: Infelizmente uma turma do 'não' utilizou indevidamente o nome do Veríssimo. Assim como 'inventaram' um texto do Dallari. Mas a manobra mais ridícula foi uma elaboradíssima teoria da conspiração: a Globo estaria montando, com a fábrica de armas Glock, uma mega-empresa de segurança privada...
Blz. Seguimos sem entender coisas como Estado e Liberdade*.
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* Eu tinha 8 anos. A professora, magra e muito alta, chamava-se Ângela. Nos encontrava só uma vez por semana: era aula de educação artística. Acho que não guardei nada sobre combinação de cores ou qq outra coisa 'artística'. Mas não vou me esquecer nunca d'uma frase dela (usada para nos dar um 'puxão de orelha'):
"Sua liberdade termina onde começa a do outro".
23 outubro 2005
Interferência
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