15 junho 2008

Memo Nº 2

Pra não perder o que coloquei "Na Memória" (ao lado):


Deitados nos catres, os cegos esperavam que o sono tivesse dó de sua tristeza. Discretamente, como se houvesse perigo de que os outros pudessem ver o mísero espetáculo, a mulher do médico tinha ajudado o marido a assear-se o melhor possível. Agora havia um silêncio dorido, de hospital, quando os doentes dormem, e sofrem dormindo. Sentada, lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões inexplicáveis a teriam preservado até agora. Num gesto cansado, levou as mãos à cara para afastar o cabelo, e pensou, Vamos todos cheirar mal. Nesse momento principiaram a ouvir-se uns suspiros, uns queixumes, uns gritinhos primeiro abafados, sons que pareciam palavras, que deveriam sê-lo, mas cujo significado se perdia no crescendo que as ia transformando em grito, em ronco, por fim um estertor. Alguém protestou lá no fundo, Porcos, são como os porcos. Não eram porcos, só um homem cego e uma mulher cega que provavelmente nunca saberiam um do outro mais do que isto.


- José Saramago ("Ensaio Sobre a Cegueira")

Scratch #092



Por William Gibson, em Florença.

13 junho 2008

É o que Me Interessa

Daqui desse momento
Do meu olhar pra fora
O mundo é só miragem
A sombra do futuro
A sobra do passado
A sombra é uma paisagem
Quem vai virar o jogo e transformar a perda
Em nossa recompensa
Quando eu olhar pro lado
Eu quero estar cercado só de quem me interessa

Às vezes é um instante
A tarde faz silêncio
O vento sopra a meu favor
Às vezes eu pressinto e é como uma saudade
De um tempo que ainda não passou
Por trás do seu sossego, atraso o meu relógio
Acalmo a minha pressa
Me dá sua palavra
Sussurre em meu ouvido
Só o que me interessa

A lógica do vento
O caos do pensamento
A paz na solidão
A órbita do tempo
A pausa do retrato
A voz da intuição
A curva do universo
A fórmula do acaso
O alcance da promessa
O salto do desejo
O agora e o infinito
Só o que me interessa



Já tem uns 6 anos que o Lenine não lança um disco com músicas inéditas. Desde então, só pequenas obras primas soltas aqui (In Cité) e ali (Unplugged). A última, transcrita acima, é d'uma beleza única. Bela e instigante. Bela e triste quando decora os passos de Flora, personagem de Patrícia Pillar em "A Favorita".

Como Lenine já esgotou os artifícios usados por gravadoras para lucrar com artistas lentos (e/ou preguiçosos), os "ao vivo" e "acústico" da vida, espera-se que finalmente ele lance um novo disco. Enquanto isso, dá-lhe "repeat" numa faixa de uma trilha sonora de novela da Globo!?!?