Ok, talvez seja um padrão: 1 disco nacional, 2 gringos. Este é o quarto complemento ao livro "1001 discos para ouvir antes de morrer".
Lenine, assim como Chico, já gravou disco ao vivo (InCité (2004)) na França. Tem uma bela coleção de fãs fora de Pindorama. Mas, como tantos outros, passou bem longe do radar de "1001..." que, como já acusei aqui, achou espaço até para o Carlinhos Brown. O lado exótico de nosso país-continente sempre merecerá mais espaço, não tem jeito. Não importa: entortou ou ignorou, a gente acha prumo. Sem necessidade de ricursos que minguam toadas outras.
Lenine já foi precoce; em 83 lançou um tal "Baque Solto" que ninguém (ou)viu. Tinha 23, mas sei nada de sua história. Ele só voltou em 93, com "Olho de Peixe", em dupla com Marcos Suzano. Violão, voz (nordestina) e pandeiro. Incompleto mas promissor. Faltava alguma coisa. Faltava estrada. Faltava contato.
"O Dia em que Faremos Contato", de 1997, achou tudo o que faltava. 4 anos de contato foram suficientes para Lenine lançar um dos melhores discos brasileiros dos últimos 20 anos. Eclético, completo, faminto. Sei nada da história dele, mas tenho certeza que ele tinha material para um álbum triplo! Deveria ter lançado... não fosse amarrado numa gravadora do século passado. Aliás, ele ainda estava no século passado. Sua música não.
Trip hop, samba, rock, maracatu, pop, frevo... Lenine pisa em tudo, com passos leves e bem marcados, sem esconder uma personalidade única. Mix inteligente é assim, completo e original. "A Ponte" abre o disco com uma comovente narração d'um garotinho-músico. Tem guitarra distorcida e brincadeiras róseanas: "Nagô, Nagô, Na Golden Gate".
A segunda faixa, "Hoje eu Quero Sair Só", é um clássico de 11 anos. A guitarra decorativa apareceria em qualquer lugar, até num Pink Floyd ou Gil. Pintou aqui, brigando com (não contra) um pandeiro (de Suzano, claro). "Vem cá, me deixa fugir. Me beija a boca. Às vezes parece que a gente deu um nó. Hoje eu quero sair só..." A lua, que já apareceu em outros Lenines de forma igualmente poética, aqui o chama: "Eu tenho que ir pra rua" ("A Lua me Chama"). Quem não tem o disco perde o maravilhoso epílogo (só grafado no encarte):
"Homem solteiro é lobo solitário: a neve não cai no chão onde ele pisa. Ninguém pegue no meu pé, nem pise na minha pegada.
Homem sozinho à noite é caçador e caça, fica uma trilha de desejos e assombros por onde passamos, eu e minha sombra..."
Como escrito, no disco anterior são basicamente dois instrumentos. Agora Lenine tinha uma "orquestra" ao seu dispor. Seu violão corria o risco de virar rabisco. Não vira, graças ao baixo de Liminha (adorável antipático onipresente) e a produção de Chico Neves. Seguem-se "Candeeiro Encantado" (É Lamp!) e "Etnia Caduca", marcas fortes da origem nordestina, pernambucana e nada provinciana. Até que pinta "Distantes Demais", dueto com Dudu Falcão (na composição) e outro com Toninho Ferraguti (na execução, tocando acordeom). A voz de Lenine se transfigura, é quase feminina. Linda.
A faixa que dá nome ao disco é um achado. Os efeitos do Chico Neves desenham um disco voador perfeito (olha que sou de Varginha! Sei do que falo). Samba moderno, sem rock, com letra que todo samba deveria ter. Perdão: eu deveria transcrever um pedacinho. Impossível. A letra toda é fantástica.
Assim como é fantástica a 8ª faixa, "Aboio Avoado", que dura um minuto exato. Sem instrumentos, sem nada. Só a voz de Lenine. Já a mixei em vários momentos, mas Chico Neves tá certo: como abertura de "Dois Olhos Negros" ela é imbatível. Aliás, "Dois Olhos Negros" é imbatível. Quase... a versão no "Acústico MTV", com Igor "Sepultura" Cavalera na batera, consegue ser melhor. Duvida?
Se este disco tem um pecado é o fato de "Pernambuco Falando para o Mundo" não fechar o disco. Encerramento que seria perfeito. Pedir demais do Chico (Neves), né? A faixa é um mix-homenagem: Luis Bandeira ("Voltei Recife"), Capiba ("Frevo Ciranda"), Alceu Valença ("Sol e Chuva") e Chico Science ("Rios, Pontes e Overdrives") - 4 gerações e estilos de Pernambuco - maravilhosamente compilados num único som. Lenine é gênio (quando quer).
A capa, retrô, foi surrupiada do livro "O Homem Eterno" - da série Futurâmica da Ediouro. Belo achado - bela sacada. Tanto quanto o Zéfiro da capa de "Barulhinho Bom", de Marisa Monte (outra sentida omissão de "1001...". Ou seja, tenho muita matéria prima pra queimar!).