Por Jorge Olímpio Bento
A BOLA, 12.07.2007
Lisboa
Decidi ser pós-moderno e neoliberal. Ora isto implica não ter passado, esquecê-lo e recusá-lo. Não existem, portanto, nunca existiram, a casa pobre onde nasci, a aldeia ignota donde vim, o país de fome e miséria, opressão e escuridão em que cresci, a dura escola das letras e da vida que frequentei, os princípios e valores em que me criei, os ideais que acalentei, as lutas em que participei, as conquistas que testemunhei, os progressos de que beneficiei, o contexto cívico e ético em que me formei, a Universidade à qual me entreguei.
Sou reforma e metamorfose. Fica para trás, desmentido e desfeito, tudo o que acumulei, defendi e pratiquei ao longo dos anos. Tudo passou e está fora de moda: os ensinamentos dos livros, a história e a filosofia, a memória e a esperança, o direito e a política, as diferenças ideológicas e programáticas dos partidos, as convicções e utopias, os gritos de revolta e liberdade, as canções românticas. Estou a deitar tudo fora.
Tudo isso me apouca, aprisiona, incomoda e persegue. É um espelho de imagens que me desafia e agride a consciência e faz a vida difícil. Exige coerência, persistência, esforço e empenhamento e torna-me cúmplice da injustiça à solta. Eu não suporto isso. Quero mudar de rumo, não ter face nem identidade; embarcar na onda do deleite, do oportunismo, cinzentismo e comodismo. Trocar o apego à firmeza e defesa da verdade pela adesão à fluidez das conveniências. Quero estar do lado donde sopram os ventos e não encarar o monte de lembranças inquietantes e de compromissos assumidos nesta caminhada longa e grisalha. Uma a uma, quero apagar as imagens dos sítios por onde andei, as missões e causas que abracei. Não tenho espaço para tanto arquivo. Detesto o Outono e Inverno; quero viver sempre entre a Primavera e o Verão.
Também quero esquecer a cidade, as praças e casas, até porque já não existem de facto, demolidas que foram para dar lugar a bancos e outros templos do mercado e finança. Vou riscar da memória os cinemas, cafés, teatros, igrejas, clubes, campos de jogos e demais centros de convívio e tertúlia e, no seu lugar, registar as construções, estruturas e entidades que hoje esbravejam para povoar todo o espaço que nos separa do céu e para impor deuses superiores aos que foram meus.
Não retenho nada da infância; arranco molduras penduradas na parede do tempo. Não são mais quadros merecedores do meu apreço. Olho para trás e entranha-se em mim a sensação de estranheza em relação ao emaranhado de sentimentos que me levavam a pensar nos outros e a conter a indiferença, o individualismo e egoísmo. Morra o bem público e viva o interesse privado!
Agora que nenhum edifício resta na memória, eu não sei dizer o que sou e se existo, já que não me consigo ver a mim próprio. Só sei que não vou voltar para a casa antiga. Não quero saber de quem lá vivia e de como vai viver para além dela. Não quero saber que lá vivi, nem de quem não tem e nunca terá casa. Quero apenas evitar que as ruínas resistam ao meu projeto de desmemoriamento e teimem em avivar este sentimento de vazio ruim, o único que fica de todos os que ferem a minha carne e se atravessam no caminho de me libertar do passado.
Para o serviço da conversão ficar bem feito, reduzirei a cinza e nada toda a reminiscência que possa roubar tempo à decisão de me entregar, de modo acelerado, vistoso e confesso, à novidade e à criação da minha descomprometida condição de pós-moderno e neoliberal.
De professor passei a facilitador; não há mais lições para dar. Pertenço, de corpo inteiro, a esta sociedade incapaz de tudo, inclusive de notar as diferenças. Doravante a minha memória está limpa do que me ligava ao passado. De resto o que não se passou não pode ser passado; o que não sucedeu não pode ser lembrança. Sou expressão da desmemoriação. Oiçam bem: recuso, renego e abjuro o passado. Todo eu sou eterno presente, sobrevivo no limbo das inovações e adaptações permanentes. Desta forma reciclado, estou apto a subir no aparelho de Estado – ou noutro qualquer – e a aceder ao exercício das mais altas funções. Se assim o quiser a divina ou outra providência, eu vou longe.
Claro que carreguei nas tintas; mas exagerar é uma maneira de alertar.