25 setembro 2009

Junkyage* :: Bob Van Gogh

Ano 0 | Episódio 1

Deveria se chamar apenas José Roberto de Souza. Mas a mãe brigou. Contra a saudade e as memórias ruins. Contra as irmãs e o viadinho do cartório de Salvador que não queria registrar o sobrenome desconhecido de um pai sumido que desconhecia a existência do filho. Marina teimou, ameaçou e colocou um Van Gogh na graça do primogênito.

José Roberto de Souza Van Gogh nasceu em Nazaré, Bahia, no dia 21 de janeiro de 1939. Dona Nhanhá, a parteira, estranhou os olhos verdes do mulatinho. Dos noventa e tantos rebentos que ela ajudou a pôr no mundo, nenhum era tão diferente. Forte, pesado e de choro firme, grave.

Na realidade, Marina não sabia nem nome nem sobrenome do pai. Sabia que tinha um "Van" qualquer coisa. Sabia que ele era holandês e que uma vez por ano fazia negócios em Salvador. Um dia ele apareceu em Nazaré, acompanhado de dois amigos. Passaram a noite ali. Uma noite apenas.

Van qualquer coisa soltou, no máximo, 7 ou 8 palavras em um português estranho e mascado. Marina não ligou. Se apaixonou. Se entregou para ele nos fundos da melhor casa da cidade. Quatro meses depois, quando já não conseguia esconder o barrigão, virou a vergonha da cidade. Seu pai a levou para Salvador - casa da tia. Mas ela retornou. Queria que o fruto daquela paixão instantânea brotasse em sua terra natal. Na terra onde ele foi concebido.

Rezou para que não viesse uma menina. Fez promessa. Sua casa já era cheia de mulheres. E ela queria alguém que a fizesse lembrar do Van.

Antes de ir ao cartório de Salvador, decidiu que o filho carregaria o sobrenome do pai, mesmo que fosse um sobrenome inventado. Com a criança no colo foi até a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Ainda não queria a benção nem o batismo. Queria apenas que o padre lhe dissesse quem era o holandês mais famoso do mundo. "Vincent Van Gogh", ele respondeu, sem entender a razão da pergunta. Marina pediu que ele escrevesse o nome, agradeceu e saiu correndo, com um largo sorriso no rosto. Nem quis saber porque aquele Van era tão famoso.

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José Roberto, Zezinho, cresceu paparicado pela mãe, avó e as 9 tias. "Desse jeito acaba virando pederasta", berrava o avô, já conformado e igualmente apaixonado por aquele neto diferente, talentoso e simpático. Zezinho dava a impressão de que poderia fazer qualquer coisa. Era bom em trabalhos manuais e também nos braçais. Ajudava o avô na roça, a avó na cozinha e as tias nos bordados. Nadava como ninguém e todo sábado corria para o litoral. Só não tinha jeito com os pés - virou goleiro. Mas não por muito tempo.

Aos 12 já tinha curiosidade demais em saber quem era seu pai. Marina, coitada, tinha pouco mais de 30 minutos de lembranças. No escuro. Sentia seu coração se apertar toda vez que Zezinho tocava no assunto. Mas destampava a falar e não parava mais. Inventou mil histórias sobre o Van qualquer coisa. E sempre terminava dizendo que ele ia voltar. Um dia ele ia voltar.

Aos 16, Zezinho desistiu de esperar. Nas andanças por Salvador descobriu tudo o que podia saber sobre os holandeses que passavam por ali. Nos intervalos das pesquisas, quebrava corações. Devia ter umas 33 namoradas só na capital. Fora aquelas da praia. E a branquela lindíssima que conhecera em Porto Seguro. Mas Zezinho tinha uma missão.

Comunicou tias e mãe de forma breve. Beijou cada uma, sempre com a mesma promessa: "Um dia eu volto". A mãe tinha certeza que sim. A mesma certeza que tinha em relação ao Van qualquer coisa. Mas chorou... Chorou por 45 dias consecutivos. Ficou doente e quase morreu. Mas em nenhum momento ela tentou segurar o seu filho. Ela sabia que não adiantaria. Só pediu uma coisa, que ele lhe mandasse cartas. Tinha aprendido a ler com ele. Gostava dos escritos e das histórias dele. Ele jurou que mandaria cartas: "Uma por semana mãe, eu prometo".

No barco que ia para Havana, trabalhando como ajudante de cozinheiro, Zezinho virou Bob Van Gogh.

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