Ano 0 | Episódio 4
Todos diziam que Ian não tinha motivo nenhum para fazer o que fez. Herdeiro de um sobrenome nobre, Slater, Ian podia ter tudo o que queria na vida. Pelo menos era o que diziam todos os moradores de Belper. Não era o que Ian pensava. Sentia-se sufocado por aquela pompa toda. Sentia-se perdido por ser conhecido por todo o vilarejo.
Ian era o caçula entre 7 irmãos. Sétimo filho de um sétimo filho. Mas nem todos entendiam o apelido da época da escola. Gordinho, baixinho e encrenqueiro, não precisava mais nada para ser o principal alvo dos colegas. Mas ele tinha algo mais: era o mais rico da turma. Seu pai negava o parentesco distante com o Slater famoso. A origem de sua fortuna o desmentia.
Ian detestava aquilo tudo. E nunca cogitou assumir a cadeira do pai, apesar de ser o preferido. Havia nascido num dia muito traumático para os ingleses. No início da noite de 14 de novembro de 1940, Coventry estava sendo bombardeada. Naquele mesmo momento, no porão de sua casa, Ian chegava ao mundo pelas mãos de um médico que não conseguia disfarçar sua bebedeira.
Cresceu detestado pelos irmãos e colegas. Chegou aos quinze anos sem entender todo aquele ódio e ciúme que atraia. Só tinha certeza de que não tinha feito nada para merecer aquilo. E tentava recusar os agrados e mimos, os presentes e elogios. Sem sucesso. Ian era detestado. E um dia resolveu devolver tudo na mesma moeda.
Era uma noite gelada de janeiro. Ian simulou um mal estar e pediu licença para ir mais cedo para a cama. Travesseiros indicavam sua presença ali. Ele estava sozinho na fábrica do pai. Pegou as chaves no escritório da casa. Espalhou óleo por todo o galpão. Sem pressa. Sabia que ninguém sentiria sua falta. Foi até a sala do pai e revirou todas as mesas e gavetas. Nem esperava encontrar todo o dinheiro que achou ali. Pegou tudo, distribuindo entre os bolsos da calça e do paletó. Pensou num bilhete, mas quem acharia um bilhete queimado?
O clarão fez os mais velhos se lembrarem dos bombardeios. Mas a guerra havia terminado 10 anos atrás. A cidade inteira correu para a fábrica do Sr. Slater. Vários eram os palpites, mas nada em Belper diminuiria o poder destrutivo daquele fogo.
Ian interrompeu sua caminhada entre árvores. Lembrou da mulher de Lot mas resolveu olhar para trás, para apreciar um pouco mais sua obra prima. Se assustou com o tamanho do estrago, com a altura das chamas. Quase se arrependeu. Mas pensou no que sofreu. Se lembrou do que não mereceu. Ameaçou um aceno e seguiu seu rumo.
Ian Slater quer embarcar num navio no porto de Liverpool.