25 setembro 2009

Junkyage* :: Ian Slater

Ano 0 | Episódio 4

Todos diziam que Ian não tinha motivo nenhum para fazer o que fez. Herdeiro de um sobrenome nobre, Slater, Ian podia ter tudo o que queria na vida. Pelo menos era o que diziam todos os moradores de Belper. Não era o que Ian pensava. Sentia-se sufocado por aquela pompa toda. Sentia-se perdido por ser conhecido por todo o vilarejo.

Ian era o caçula entre 7 irmãos. Sétimo filho de um sétimo filho. Mas nem todos entendiam o apelido da época da escola. Gordinho, baixinho e encrenqueiro, não precisava mais nada para ser o principal alvo dos colegas. Mas ele tinha algo mais: era o mais rico da turma. Seu pai negava o parentesco distante com o Slater famoso. A origem de sua fortuna o desmentia.

Ian detestava aquilo tudo. E nunca cogitou assumir a cadeira do pai, apesar de ser o preferido. Havia nascido  num dia muito traumático para os ingleses. No início da noite de 14 de novembro de 1940, Coventry estava sendo bombardeada. Naquele mesmo momento, no porão de sua casa, Ian chegava ao mundo pelas mãos de um médico que não conseguia disfarçar sua bebedeira.

Cresceu detestado pelos irmãos e colegas. Chegou aos quinze anos sem entender todo aquele ódio e ciúme que atraia. Só tinha certeza de que não tinha feito nada para merecer aquilo. E tentava recusar os agrados e mimos, os presentes e elogios. Sem sucesso. Ian era detestado. E um dia resolveu devolver tudo na mesma moeda.

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Era uma noite gelada de janeiro. Ian simulou um mal estar e pediu licença para ir mais cedo para a cama. Travesseiros indicavam sua presença ali. Ele estava sozinho na fábrica do pai. Pegou as chaves no escritório da casa. Espalhou óleo por todo o galpão. Sem pressa. Sabia que ninguém sentiria sua falta. Foi até a sala do pai e revirou todas as mesas e gavetas. Nem esperava encontrar todo o dinheiro que achou ali. Pegou tudo, distribuindo entre os bolsos da calça e do paletó. Pensou num bilhete, mas quem acharia um bilhete queimado?

O clarão fez os mais velhos se lembrarem dos bombardeios. Mas a guerra havia terminado 10 anos atrás. A cidade inteira correu para a fábrica do Sr. Slater. Vários eram os palpites, mas nada em Belper diminuiria o poder destrutivo daquele fogo.

Ian interrompeu sua caminhada entre árvores. Lembrou da mulher de Lot mas resolveu olhar para trás, para apreciar um pouco mais sua obra prima. Se assustou com o tamanho do estrago, com a altura das chamas. Quase se arrependeu. Mas pensou no que sofreu. Se lembrou do que não mereceu. Ameaçou um aceno e seguiu seu rumo.

Ian Slater quer embarcar num navio no porto de Liverpool.

Junkyage* :: Vera Bridges

Ano 0 | Episódio 3

Há 2 anos Vera fugiu do orfanato de Pawtucket. Tinha acabado de completar 16 anos e já não tinha mais esperança nenhuma em ser adotada. Duas famílias tinham manifestado interesse, quando ela ainda era bem mais nova. Mas seu comportamento agitado, agressivo, espantava todo mundo. O orfanato era na verdade uma pequena extensão da principal igreja católica da cidade. Tinha pouco mais de uma dúzia de meninas que foram abandonadas por seus pais. Como Vera, todas deviam ser filhas de operárias solteiras que não tinham condições de alimentar outra boca.

Vera foi encontrada na ponte da avenida principal. Por isso o pessoal da igreja resolveu batizá-la como Vera Bridges. Mesmo antes de começar a andar, Vera já mostrava um comportamento difícil. Recusava mamadeiras dos mais diversos tipos. Mas tinha uma saúde de ferro. Pelo que se sabe, nunca adoeceu. Mas cresceu uma menina franzina, de poucas curvas. Era constante alvo de chacota das colegas, que diziam que ela parecia e andava como um menino. Vera tinha passos duros. Mas era elegante, altiva.

Planejara a fuga por longos 3 meses. Aconteceria logo após a aula dominical, quando normalmente a igreja ficava repleta de crianças acompanhadas dos pais e outros familiares. Talvez demorassem meia hora, pouco mais ou pouco menos, para sentirem sua falta. Era tempo suficiente para ela plantar falsas pistas sobre seu destino.

Vera simulou uma ida para Boston. Fez questão de mostrar bem o rosto de traços fortes quando comprou a passagem de ônibus que nunca utilizaria. Também passou pela estação momentos antes do embarque, saco de viagem na mão, fazendo de tudo para ser percebida. Minutos antes da partida do ônibus se escondeu no banheiro, trocou a roupa e os sapatos, prendeu os cabelos e saiu de lá como outra pessoa.

Vera havia convencido John, um cara de 22 anos que trabalhava na fábrica de tecidos, a levá-la dali. Queria ir para Nova York. John disse que o máximo que conseguiria fazer era deixá-la em Springfield. Todo domingo ele levava uma encomenda de tecidos para Palmer. Seria fácil justificar um pequeno atraso de meia hora na viagem. Em troca de um beijo que se transformou em uns amassos forçados, John prometeu não contar para ninguém que a havia ajudado.

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Estamos no dia 27 de setembro de 1955. É fim de uma triste tarde de outono em Nova York quando Vera se lembra que é seu aniversário: 18 anos. Queria um trago de whisky para comemorar. Se contenta com um cigarro. Se lamenta com um suspiro. Mas tem um alívio: não precisa mais mentir sobre sua idade. Escapou ilesa, se sujeitando a trabalhos que ela jurou nunca mais fazer.

Vera dividia um apartamento de 2 quartos no Brooklin com uma velha e outras 3 meninas. Todas estavam ali fugindo de alguém ou de alguma coisa. Só a velha que não - havia desistido de fugir há muito tempo. E sobrevivia alugando um quarto com 2 beliches para meninas sem idade nem documentos. Seu filho gostava de passar ali uma vez por semana, para descolar alguns trocados e bulir com as garotas. De Vera ele não chegava perto. Tinha medo. E vivia dizendo para a mãe tomar cuidado com aquela vagabunda esquisita. "Ela é a única que me paga em dia", justificava a velha.

Na verdade a velha nutria uma simpatia especial por Vera. Mas não era correspondida. Vera retrucava com "sim" e "não" o questionário cotidiano. Só uma garota, Cecille, conseguia a atenção de Vera. Cecille tinha planos mirabolantes e uma história difícil de acreditar. Foi a primeira pessoa a arrancar gargalhadas de Vera Bridges em quase 18 anos de vida.

Junkyage* :: Jules Boutine

Ano 0 | Episódio 2

Jules Boutine é filho de uma puta de Nova Orleans. Nasceu no dia 13 de agosto de 1942. Delia, a mãe, desconfia ou deseja que o pai seja aquele moço saudável e bonito de Palestine, Texas. Bill qualquer coisa era o nome dele. Patrocinado pelo pai, corria as cidades do sul tentando escapar de uma convocação para a guerra. "Evite as grandes cidades", aconselhou o velho pai. Mas Nova Orleans tinha tentações demais para ser ignorada.

Delia era uma morena bonita, resultado de gerações de misturas nunca reconhecidas. A avó era escrava. A mãe, segundo amigos mais velhos, a puta mais linda que aquela cidade já conhecera. Cresceu no bordel e tentou cantar. O posto era mais concorrido que as camas. Até que tinha algum talento, mas ele ficou reservado para poucos clientes fiéis.

Até o nascimento de Jules trabalhou na cozinha. Não tinha jeito com o básico, mas todos diziam que seu feijão vermelho era imbatível. Tentou voltar para seu posto, atendendo pedidos. Mas já não conseguia conciliar a vida noturna com os afazeres de mãe.

As colegas ajudaram na criação de Jules. O dono da casa relutou, mas aceitou que mãe e filho ali permanecessem. O menino era quietinho demais.

Aos 9 Jules já ajudava na manutenção da casa, lavando pratos ou varrendo o palco. Era a parte que ele mais gostava: varrer o palco. Fazia da vassoura uma parceira de dança, um microfone ou um trombone. Passava horas ali, imaginando o melhor jazz já tocado em todos os tempos.

Fez amizade com os músicos. Virou mascote da banda fixa. Era branquelo demais perto deles. Era preto demais para os brancos da cidade. Era sempre repreendido nas ruas, fosse usando algo destinado aos negros, fosse usando algo destinado aos brancos. Aceitava quieto e sem entender.

Pouco falava com a mãe. E nunca quis saber quem era seu pai. Quando alguém tocava no assunto ele simplesmente saia de perto. Mais velho, desconversava: "Eu não tenho pai".

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Todos achavam normal a quietude de Jules. E se divertiam, escondidos, com os shows imaginários que ele dava enquanto limpava o palco do bordel. Até que um dia Jules sumiu. Delia ficou desesperada. As amigas diziam que ele voltaria. Voltou, dois dias depois, sem esboçar nenhum tipo de explicação: "Andei por aí."

Os sumiços ficaram mais frequentes e longos. Jules subia e descia o Mississipi, acompanhando bandas de segunda em algumas vezes, sozinho outras tantas. Um dia criou coragem e foi bater em Memphis. Ficou sabendo de uma coisa diferente que estava acontecendo por lá. Um som diferente. Ficou quase um mês, mentindo sobre a idade e fazendo qualquer tipo de bico que lhe garantisse alguns trocados.

Mas sempre voltava. Calado, mas agora um pouco mais alegre. Pediu que o dono da casa trouxesse alguns caras de Memphis para tocar ali. O cara não viu sentido em gastar tanta grana com o transporte e hospedagem de uma banda que nem jazz fazia direito. Jules queria estar perto dos caras e avisou para a mãe que desta vez iria sem a certeza de voltar tão cedo. Delia tentou argumentar que um moleque de 13 anos não pode andar por aí, sozinho.

Jules Boutine disse que não estaria sozinho, embrulhou uma calça e três camisas, emprestou 14 dólares e se mandou para Memphis.

Junkyage* :: Bob Van Gogh

Ano 0 | Episódio 1

Deveria se chamar apenas José Roberto de Souza. Mas a mãe brigou. Contra a saudade e as memórias ruins. Contra as irmãs e o viadinho do cartório de Salvador que não queria registrar o sobrenome desconhecido de um pai sumido que desconhecia a existência do filho. Marina teimou, ameaçou e colocou um Van Gogh na graça do primogênito.

José Roberto de Souza Van Gogh nasceu em Nazaré, Bahia, no dia 21 de janeiro de 1939. Dona Nhanhá, a parteira, estranhou os olhos verdes do mulatinho. Dos noventa e tantos rebentos que ela ajudou a pôr no mundo, nenhum era tão diferente. Forte, pesado e de choro firme, grave.

Na realidade, Marina não sabia nem nome nem sobrenome do pai. Sabia que tinha um "Van" qualquer coisa. Sabia que ele era holandês e que uma vez por ano fazia negócios em Salvador. Um dia ele apareceu em Nazaré, acompanhado de dois amigos. Passaram a noite ali. Uma noite apenas.

Van qualquer coisa soltou, no máximo, 7 ou 8 palavras em um português estranho e mascado. Marina não ligou. Se apaixonou. Se entregou para ele nos fundos da melhor casa da cidade. Quatro meses depois, quando já não conseguia esconder o barrigão, virou a vergonha da cidade. Seu pai a levou para Salvador - casa da tia. Mas ela retornou. Queria que o fruto daquela paixão instantânea brotasse em sua terra natal. Na terra onde ele foi concebido.

Rezou para que não viesse uma menina. Fez promessa. Sua casa já era cheia de mulheres. E ela queria alguém que a fizesse lembrar do Van.

Antes de ir ao cartório de Salvador, decidiu que o filho carregaria o sobrenome do pai, mesmo que fosse um sobrenome inventado. Com a criança no colo foi até a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Ainda não queria a benção nem o batismo. Queria apenas que o padre lhe dissesse quem era o holandês mais famoso do mundo. "Vincent Van Gogh", ele respondeu, sem entender a razão da pergunta. Marina pediu que ele escrevesse o nome, agradeceu e saiu correndo, com um largo sorriso no rosto. Nem quis saber porque aquele Van era tão famoso.

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José Roberto, Zezinho, cresceu paparicado pela mãe, avó e as 9 tias. "Desse jeito acaba virando pederasta", berrava o avô, já conformado e igualmente apaixonado por aquele neto diferente, talentoso e simpático. Zezinho dava a impressão de que poderia fazer qualquer coisa. Era bom em trabalhos manuais e também nos braçais. Ajudava o avô na roça, a avó na cozinha e as tias nos bordados. Nadava como ninguém e todo sábado corria para o litoral. Só não tinha jeito com os pés - virou goleiro. Mas não por muito tempo.

Aos 12 já tinha curiosidade demais em saber quem era seu pai. Marina, coitada, tinha pouco mais de 30 minutos de lembranças. No escuro. Sentia seu coração se apertar toda vez que Zezinho tocava no assunto. Mas destampava a falar e não parava mais. Inventou mil histórias sobre o Van qualquer coisa. E sempre terminava dizendo que ele ia voltar. Um dia ele ia voltar.

Aos 16, Zezinho desistiu de esperar. Nas andanças por Salvador descobriu tudo o que podia saber sobre os holandeses que passavam por ali. Nos intervalos das pesquisas, quebrava corações. Devia ter umas 33 namoradas só na capital. Fora aquelas da praia. E a branquela lindíssima que conhecera em Porto Seguro. Mas Zezinho tinha uma missão.

Comunicou tias e mãe de forma breve. Beijou cada uma, sempre com a mesma promessa: "Um dia eu volto". A mãe tinha certeza que sim. A mesma certeza que tinha em relação ao Van qualquer coisa. Mas chorou... Chorou por 45 dias consecutivos. Ficou doente e quase morreu. Mas em nenhum momento ela tentou segurar o seu filho. Ela sabia que não adiantaria. Só pediu uma coisa, que ele lhe mandasse cartas. Tinha aprendido a ler com ele. Gostava dos escritos e das histórias dele. Ele jurou que mandaria cartas: "Uma por semana mãe, eu prometo".

No barco que ia para Havana, trabalhando como ajudante de cozinheiro, Zezinho virou Bob Van Gogh.

Memo #03

Até pensei que ela quisesse sexo, e rocei a língua atrás da sua orelha. Aí ela me repeliu, virou a cara, e no relance pareceu que em lugar dos olhos tinha duas postas de sangue. Andou devagar até a janela, enfiou os dedos entre as réguas de madeira da veneziana e ali permaneceu de costas para mim, tremendo um pouco. Dei umas voltas na sala, fui ao quarto dela, larguei na cama o capote e o gorro do ex-marido. Fui ao banheiro, fui à cozinha, dei outras voltas na sala e me lembrei que lhe devia duas aulas, seis mil forintes. Deixei o dinheiro na mesa, debaixo da garrafa térmica, mas ficou esquisito, peguei-o de volta. Abri a porta, nevava lá fora, saí assim mesmo.

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Chico Buarque ("Budapeste")